A sala de aula é muito mais do que um simples espaço físico onde o ensino
acontece. Ela pode ser vista como um verdadeiro microcosmo da sociedade, um local
onde se reproduzem, tensionam e, em muitos momentos, até se subvertem as estruturas
sociais, culturais e econômicas que moldam as relações humanas. Como destacou
Bourdieu (1999), a escola funciona como um campo simbólico no qual o capital cultural
e social circula, legitimando hierarquias e desigualdades. Entretanto, essa dinâmica não é
algo fixo ou imutável: Bernstein (2000) nos lembra que a sala de aula também pode ser
um espaço de resistência, onde práticas pedagógicas inovadoras questionam e
transformam as ordens estabelecidas.
Dados recentes do Censo Escolar (INEP, 2024) apontam que 56% das escolas de
Educação Básica enfrentam altos índices de vulnerabilidade social. Essa realidade tem
um impacto direto nas relações interpessoais dentro da sala de aula e na qualidade do
processo educativo. Diante disso, o papel do professor ultrapassa o simples ato de
1 Doutora em Educação e Sócia Consultora da Kognitiv Consultoria Educacional e Psicológica
transmitir conteúdos curriculares, assumindo um compromisso ético e político na
mediação dessas relações e na construção de ambientes seguros, acolhedores e inclusivos.
Quando consideramos a sala de aula como um espaço social, torna-se fundamental
reconhecer a dimensão afetiva do aprender. Autores como Wallon (2007) e Damasio
(2010) ressaltam que o processo cognitivo está profundamente ligado à experiência
emocional. Ambientes afetivamente positivos favorecem o desenvolvimento intelectual e
a construção do conhecimento, ampliando a visão do ensino para além do aspecto
cognitivo, incluindo a gestão das emoções, do vínculo e do sentimento de pertencimento
— todos elementos essenciais para que a aprendizagem seja significativa.
No entanto, não podemos ignorar que o ambiente escolar também convive com
diversas situações de risco que comprometem o desenvolvimento integral tanto de alunos
quanto de professores. A violência simbólica — conceito elaborado por Bourdieu (1998)
para explicar as formas sutis e naturalizadas de opressão e exclusão — está presente nas
práticas institucionais e nas interações do dia a dia, perpetuando preconceitos,
discriminações e desigualdades. Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar
(PeNSE, 2023), 38% dos estudantes já enfrentaram episódios de discriminação, e 42%
apresentam sintomas relacionados à ansiedade e depressão, evidenciando o impacto
profundo dessas violências invisíveis na saúde mental dos jovens.
Paralelamente, a questão do adoecimento docente chama a atenção. Pesquisa da
Associação Nacional dos Professores (ANP, 2023) revela que 47% dos educadores
apresentam sintomas de burnout, agravados por sobrecarga, insegurança e precarização
das condições de trabalho. Esse cenário reforça a urgência de políticas institucionais que
promovam cuidado e suporte ao professor, além do desenvolvimento de habilidades para
a mediação de conflitos e fortalecimento das redes de apoio dentro da escola.
Uma das manifestações mais visíveis dessas dinâmicas de violência é o bullying,
tanto presencial quanto virtual. Na perspectiva da psicanálise social, Safatle (2013)
entende o bullying como a externalização de conflitos intrapsíquicos que se refletem nas
relações interpessoais, reproduzindo exclusão e violência. Estudos do Ministério da
Educação (MEC, 2024) indicam que cerca de 29% dos estudantes já foram vítimas de
bullying, enquanto o cyberbullying atinge 18% dos jovens, causando sérios danos à saúde
emocional e social.
Frente a esse quadro, a escola precisa assumir um papel proativo, posicionandose como um espaço acolhedor e interlocutor qualificado. Isso implica adotar protocolos
claros para o atendimento e a escuta sensível de alunos em sofrimento psíquico, além de
fortalecer a articulação com famílias, serviços de saúde e redes comunitárias, buscando
construir ambientes mais seguros e inclusivos (UNICEF, 2023).
Neste contexto a afetividade emerge como pilar fundamental da prática educativa.
Freire (1996) nos lembra que ensinar é, acima de tudo, um ato ético e amoroso, baseado
no diálogo e na esperança. Reconhecer o amor como verbo na educação fortalece a
resiliência dos professores e estabelece vínculos profundos e significativos com os
estudantes. Dados do INEP (2024) confirmam que educadores que se sentem
emocionalmente apoiados e valorizados institucionalmente apresentam maior satisfação
e desempenho, fatores que reverberam diretamente na qualidade do ensino.
A ética do cuidado, aprofundada por Noddings (2011) e Gilligan (2008), amplia a
noção de cuidado para além do âmbito pessoal, entendendo-o como uma dimensão
relacional e política indispensável à educação. Práticas como a escuta ativa, a empatia e
o acolhimento são fundamentais para construir escolas inclusivas, que reconheçam e
valorizem a singularidade de cada sujeito. Relatórios da UNESCO (2023) mostram que
escolas que institucionalizam políticas de cuidado sistemático obsservam redução
significativa da evasão escolar e ganhos no desempenho acadêmico.
Pensar a escola como um ecossistema relacional complexo — onde alunos,
professores, famílias e comunidade estão interligados — é reconhecer que as
interdependências entre esses atores formam a base para ações coletivas de cuidado e
promoção da saúde emocional. Nessa direção, a pesquisa-ação (Thiollent, 2011) surge
como uma metodologia eficaz para diagnosticar o contexto local, estimular a reflexão
crítica e impulsionar ações transformadoras participativas.
Mapear riscos e potencialidades no ambiente escolar e na comunidade é uma etapa
indispensável para compreender as especificidades de cada realidade e construir
intervenções eficazes e sustentáveis. Tal mapeamento envolve identificar
vulnerabilidades — como violência, exclusão social, precariedade econômica e
adoecimento — e também os recursos presentes, como apoios familiares, saberes locais,
práticas culturais e redes de solidariedade.
De acordo com Silva et al. (2022), a escola não pode ser entendida de forma
isolada, mas como parte de um ecossistema complexo, cujos diversos elementos
interagem permanentemente. A articulação intersetorial entre educação, saúde e
assistência social é vital para criar redes de proteção que respondam integralmente às
necessidades das crianças, adolescentes e suas famílias.
Essa intersetorialidade, que significa a coordenação integrada entre diferentes
políticas e serviços, amplia o alcance das ações e evita a fragmentação, um dos grandes
desafios das políticas públicas (Santos & Camargo, 2020). Ela possibilita o
compartilhamento de informações, o planejamento conjunto e o acompanhamento
sistemático dos casos, promovendo uma visão mais holística dos problemas educacionais
e sociais.
Além dos riscos é fundamental reconhecer e valorizar as potencialidades locais:
lideranças comunitárias, organizações não governamentais, grupos culturais e redes de
solidariedade são forças estratégicas para fortalecer a resiliência dos sujeitos e fomentar
práticas pedagógicas e sociais que valorizem a diversidade e a inclusão (Ferreira &
Almeida, 2021).Outro ponto central é a corresponsabilidade entre todos os atores
envolvidos — gestores, professores, profissionais da saúde, assistência social, famílias e
estudantes. Essa corresponsabilidade demanda espaços participativos e deliberativos,
onde as decisões sejam tomadas coletivamente, fortalecendo o sentimento de
pertencimento e o engajamento, essenciais para a eficácia e sustentabilidade das ações
(Lopes & Rocha, 2019).
A autonomia coletiva emerge nesse processo como um pilar fundamental,
permitindo que a comunidade escolar se reconheça como protagonista da transformação,
capaz de identificar desafios, potencialidades e traçar seus próprios caminhos para
superação. Essa autonomia está profundamente ligada à democracia participativa e ao
empoderamento social — fundamentos essenciais para uma educação emancipatória
(Freire, 1996).
Metodologicamente a pesquisa-ação participativa se destaca por articular saberes
acadêmicos e populares, unir reflexão e prática, e valorizar o protagonismo dos
envolvidos. Assim, é possível construir diagnósticos ricos e legítimos da realidade escolar
e comunitária, que alimentam planos de ação contextualizados e culturalmente sensíveis
(Thiollent, 2011).
De fato, se faz necessário e importante ressaltar que a sustentabilidade das
intervenções depende da capacidade de monitoramento contínuo e da flexibilidade para
adaptar as estratégias diante das mudanças sociais constantes. Além disso, a ampliação
das redes de apoio e o fortalecimento dos vínculos afetivos e institucionais são
imprescindíveis para manter viva a dinâmica de cuidado e transformação dentro e fora da
escola (UNESCO, 2023). O mapeamento integrado de riscos e potencialidades, a
articulação intersetorial e o fortalecimento da corresponsabilidade e autonomia coletiva
são fundamentos imprescindíveis para humanizar os espaços educativos e construir
escolas seguras, inclusivas e capazes de promover o desenvolvimento integral de todos
os seus sujeitos.
Afeto, Emoções e Sentimentos na Constituição do Sujeito e no Processo Educativo: Um Olhar Contemporâneo
Compreender o ser humano como um sujeito integral, cuja constituição envolve o
afeto, as emoções e os sentimentos, é um tema que ocupa espaço central nas ciências
humanas e sociais atuais. Essa visão desafia o modelo tradicional de educação focado
apenas na transmissão de conteúdos e aponta para um processo formativo que reconhece
a complexidade do desenvolvimento humano.
Lev Vygotsky (2000), referência na psicologia histórico-cultural, nos lembra que
o desenvolvimento cognitivo está estreitamente ligado às experiências afetivas e sociais.
Para ele, o “desejo de saber” não é um impulso isolado, mas nasce da interação com o
outro e da necessidade de ter sua singularidade reconhecida no coletivo. Ou seja, o
conhecimento é construído em um contexto emocional rico, de trocas, pertencimento e
identificação.
Carlos Skliar (2018) complementa essa visão ao destacar que a escuta sensível e
o reconhecimento do silêncio do outro são gestos éticos essenciais na educação. Para ele,
educar é acolher a alteridade, respeitar as diferenças e criar um espaço onde o sujeito se
reconheça em sua totalidade, incluindo suas emoções e subjetividades. O processo
educativo, portanto, é também um processo de formação identitária, que só se completa
quando há valorização da singularidade de cada indivíduo.
Essa perspectiva exige uma mudança profunda na prática pedagógica. O aluno
deixa de ser mero receptor passivo e o professor se torna um mediador atento, que escuta
e acompanha o percurso emocional e identitário do educando. A afetividade torna-se um
recurso epistemológico e ético que fortalece vínculos, motivações e engajamento na
aprendizagem.
A neurociência afetiva, em consonância, confirma que as emoções têm papel
decisivo no aprendizado, influenciando a atenção, a memória e a resolução de problemas
(Damasio, 2010). Ambientes escolares que promovem segurança emocional e
reconhecimento diminuem o estresse e favorecem a plasticidade cerebral, criando
condições mais férteis para aprendizagens significativas.
Além disso, a teoria do reconhecimento, defendida por Axel Honneth (1995),
ressalta que o desenvolvimento do sujeito depende do reconhecimento mútuo na esfera
social. A ausência desse reconhecimento leva à exclusão e fragiliza a identidade,
manifestando-se em dificuldades escolares, baixa autoestima e até evasão.
Assim, educar implica cuidar das dimensões emocionais e identitárias,
promovendo práticas que incluam escuta ativa, diálogo respeitoso, validação dos
sentimentos e fortalecimento da autoestima. Esse cuidado integral é fundamental para
formar sujeitos críticos, autônomos e socialmente engajados.
Para refletir: afeto, emoções e sentimentos não são aspectos secundários da
educação, mas alicerces da experiência humana e do processo educativo. Incorporá-los
na escola é fundamental para construir uma educação verdadeiramente humanizadora,
que valorize a singularidade e potencialize o desenvolvimento integral dos sujeitos.
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