A educação atravessa um momento de profunda transição. A entrada massiva das tecnologias digitais, os impactos socioculturais da pandemia de COVID-19 e as novas ecologias do saber têm pressionado os sistemas educacionais a repensarem suas formas, sentidos e finalidades. No entanto, mais do que uma mera adaptação a ferramentas ou modulações curriculares, trata-se de uma transformação paradigmática, que exige reelaboração das noções de ensinar, aprender, conviver e, sobretudo, de cuidar. O discurso da inovação muitas vezes é sedutor: plataformas, inteligência artificial, ensino híbrido e microcertificações são apresentados como soluções quase mágicas para antigos problemas. Contudo, como alerta Paulo Freire (1996), educar não é transferir conhecimento, mas criar possibilidades para a sua produção ou construção. Assim, não basta integrar tecnologia ao cotidiano escolar sem repensar criticamente os fundamentos epistemológicos e éticos da prática pedagógica. A tecnologia pode mediar, mas é o vínculo que educa — e isso exige presença, escuta e compromisso.
A contradição do nosso tempo: entre a abertura e a precarização
Vivemos um paradoxo. De um lado, surgem práticas pedagógicas que apostam na personalização da aprendizagem, na centralidade do estudante e na integração de múltiplas linguagens e temporalidades. De outro, cresce a oferta de cursos precarizados, marcados por conteúdos engessados, pouca mediação docente e baixa interação significativa. Como afirma Pérez Gómez, a escola que não transforma a si mesma, transforma pouco o mundo (2013).
Essa contradição é também reflexo de uma gestão educacional muitas vezes limitada à lógica da eficiência técnica, esquecendo sua função política e formativa. A gestão não pode ser neutra: ela decide, organiza e orienta práticas. Deve, portanto, assumir uma função ética e pedagógica, atuando como ponte entre inovação e coerência, entre discurso e prática. Como sugere Carlos Skliar (2003), a educação não pode ser um projeto de silenciamento do outro, mas sim um espaço de alteridade, onde o outro é reconhecido em sua dignidade e diferença.
A urgência da escuta e do cuidado
Carlos Skliar nos convida a pensar a escola como lugar de presença, onde a escuta não é uma técnica, mas uma postura ética diante do outro. Escutar, para ele, é “ser tocado” pelo que o outro diz e, mais ainda, pelo que ele cala. Em tempos de digitalização acelerada, é necessário lembrar que a escuta é uma forma de resistência à desumanização. Não se trata de recusar o digital, mas de garantir que ele não substitua aquilo que só o humano pode oferecer: o cuidado, a responsabilidade, a hospitalidade.
Paulo Freire já advertia que a educação precisa ser um ato de amor e de coragem (FREIRE, 1987). Amor, neste caso, não é afeto ingênuo, mas compromisso radical com o outro, com sua formação integral e com a transformação da realidade. O educador, diz Freire, deve ser um sujeito que se arrisca no inédito viável — e isso vale também para a gestão.
A gestão educacional, nesse sentido, precisa ser formativa. Mais do que administrar recursos, ela deve promover sentido, sustentar processos coletivos, garantir coerência e proteger o espaço pedagógico do esvaziamento ético. Em tempos de aceleração e padronização, o gestor educacional é chamado a ser guardião do humano.
Por uma educação crítica e humanizadora
Pérez Gómez (2013) defende que vivemos uma transição do modelo instrucional para o modelo formativo, no qual o conhecimento não é mais algo dado e fixo, mas um processo em constante reconstrução. Para isso, é necessário repensar os currículos, as metodologias e, sobretudo, a relação pedagógica. O centro da escola não pode ser apenas o conteúdo, mas a experiência de aprender e ensinar em comunidade.
As escolas precisam ser repensadas como ecossistemas educativos complexos, em que diferentes tempos, espaços e agentes se entrelaçam. A formação continuada dos professores, o fortalecimento dos vínculos e a escuta ativa das juventudes são pilares de uma transformação que seja verdadeiramente humanizadora. Como resume Skliar (2012), “educar é mais do que ensinar; é demorar-se com o outro, é reconhecer sua existência como um acontecimento”.
Educar ainda é encontro
A educação está em transição, sim. Mas a direção dessa transição não é neutra — ela pode tanto aprofundar desigualdades quanto gerar experiências transformadoras. Cabe a nós, educadores, gestores, pesquisadores e cidadãos, escolher o tipo de escola que queremos fortalecer. Escolher, portanto, se queremos formar sujeitos para o mercado ou para a vida, para a repetição ou para o pensamento crítico, para a obediência ou para a emancipação.
Mais do que nunca, precisamos falar de educação com responsabilidade, com criticidade e com esperança. Porque, no fim das contas, educar continua sendo isso: um encontro entre pessoas que aprendem e se transformam mutuamente.
Referências bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
____________. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
PÉREZ GÓMEZ, Ángel I. Educação na era digital: a escola educativa. Porto Alegre: Penso, 2013.
SKLIAR, Carlos. A escuta e o silenciamento: experiências com a alteridade na educação. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; ZACCHI, Valter (orgs.). O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 2003.
_____________. Quem somos nós? Belo Horizonte: Autêntica, 2012.